Apesar da insistente retórica da teoria da evolução de Darwin, ainda sim dá para aproveitar alguma coisa dessa entrevista.O entrevistado não precisava ter as orelhas feridas para entender que a violência é natural do homem, somente do homem. O homem é o único que não precisa dela como ferramenta de sobrevivência, mas mesmo assim faz questão de usá-la. a abordagem da influência da literatura no comportamento humano também muito interessante.
Reportagem da Revista Veja de 9/maio/2012 de Gabriela Careli. O pesquisador americano Jonathan Gottschall de 39 anos é hoje um expoente entre os neodarwinistas, empenha-se em explicar o comportamento humano à luz da teoria da evolução de Darwin.
Eis a entrevista na íntegra, tirem suas próprias conclusões:
Reportagem da Revista Veja de 9/maio/2012 de Gabriela Careli. O pesquisador americano Jonathan Gottschall de 39 anos é hoje um expoente entre os neodarwinistas, empenha-se em explicar o comportamento humano à luz da teoria da evolução de Darwin.
Eis a entrevista na íntegra, tirem suas próprias conclusões:
Professor de literatura inglesa na Universidade Washington e Jefferson, na Pensilvânia, autor de seis livros, Gottschall é defensor de uma tese original sobre o papel das obras de ficção. sejam tragédias gregas ou contos de fadas, na definição das estratégias evolutivas da especie humana. O cerne de seu pensamento foi condensado em The Storyiellieng Animal:How Stories Make Us Human (algo como O Animal Narrador:Como Contar Histórias Nos Faz Humanos), sua obra mais recente, ainda sem tradução no Brasil. Gottschall vê modernidade na obsessão de atingir a grandeza pela aventura e pelo enfrentamento violento das adversidades, características de Ulisses, herói da Ilíada, do grego Homero, o mais antigo poema ocidental, escrito no século VIII antes de Cristo. Há um ano e meio Gottschall pratica MMA e vai contar sua experiência em um livro, no qual vai refletir sobre os motivos que levam os homens a se digladiar e até o mais gentil dos indivíduos a se deleitar com os espetáculos da barbárie contemporânea nos octógonos.
Veja: O que o senhor diria aos pais que se preocupam com os filhos que evitam os livros e desperdiçam seu tempo com videogames e outros gadgets?
Jonathan: Os jovens e as pessoas em geral estão lendo cada vez menos, sem dúvida. Isso não significa, no entanto, que elas estão se afastando das histórias e da ficção. A leitura deixou de ser prioritária porque foi sendo substituída pouco a pouco pelas outras formas de narrativas trazidas da revolução digital. Um americano médio assiste ao menos cinco horas de TV por dia e gasta cada vez mais tempo imerso na realidade virtual dos videogames. A ficção, que acredito ser a principal responsável pelo desenvolvimento e pelo bem-estar psicológico do ser humano, vai continuar a fazer parte da nossa vida. Muitos cientistas concordam com a tese de que criar, contra e participar de uma história são ferramentas evolutivas desenvolvidas por motivos bem específicos. Não existe a possibilidade de tudo isso desaparecer. Seria como desaprender a caminhar. A geração videogame está dentro de uma obra que está sendo criada e partilhada em tempo real. A minha impressão é que os games vão intensificar os efeitos da ficção em nossa vida, não diminuí-los. Nos jogos virtuais, a pessoa é o personagem principal e não diz "ele morreu", mas sim "eu morri". E isso faz toda a diferença.
Jonathan: Há duas teorias principais sobre narrativa e evolução. Uma delas considera o ato de criar e contar histórias um subproduto evolutivo, decorrente do desenvolvimento da inteligência humana. A outra, mais aceita, é a de que as histórias funcionam como simuladores de voo que preparam os pilotos em terra para enfrentar condições adversas reais no ar. Elas nos fornecem pistas sobre a melhor maneira de agir em diversas situações. As histórias parecem muito diferentes uma das outras, mas elas possuem uma estrutura similar: Há sempre um personagem, um problema e um esforço para superar tal problema. Não importa o gênero - tragédia, ação, humor ou romance-, todas giram em torno da mesma espiral. Inclusive as histórias espontâneas, como as inventadas pelas crianças durante as brincadeiras de faz de conta, ou os sonhos - as histórias contadas a nós mesmos pelo nosso cérebro.Os sonhos,em dos grandes mistérios da ciência, são mais difíceis de analisar. Já as brincadeiras infantis é mais fácil encontrar elementos para comprovar que as histórias não são apenas produto da cultura e do aprendizado. Em todos os lugares do mundo, tanto em sociedades tribais quanto em países em desenvolvimento, crianças de 4 e 8 anos de idade passam a maior parte do tempo de virgília em um mundo imaginário, testando possibilidades a partir de enredos com heróis e princesas. Para os pequenos, isso é tão natural quanto respirar. Não é ensinado. É biológico. Tenho duas filhas, uma de 4 anos e a outra de 7 anos, e aprendi muito sobre o assunto em suas brincadeiras. Inspirei-me em Darwin, um pai dedicado que também costumava observar seus filhos do ponto de vista científico.
Jonathan: Diversos estudos foram feitos sobre o poder da ficção nas atitudes e no comportamento das pessoas. Essas pesquisas avaliam as percepções de participantes contrários e favoráveis a uma determinada causa polêmica, como o aborto ou a pena de morte.Os dois grupos leem textos de ficção ou não ficção sobre um mesmo assunto e com conteúdo similar. Na maioria dos estudos, as pessoas que leem textos de ficção mudam de opinião com muito mais facilidade do que as expostas a histórias reais. Absortos em histórias fictícias, os individuo tendem a baixar a guarda, deixam seus preconceitos de lado. Varrem a dose de ceticismo que têm sobre determinado assunto para debaixo do tapete e tornam-se mais receptivos a crenças contrárias às suas. Colocam-se no papel do personagem principal e vivenciam seus dramas e problemas. Um exemplo recente aconteceu nos Estados Unidos. Os americanos sempre foram majoritariamente contrários ao homossexualismo e ao casamento gay. Nos últimos quinze anos, a situação se inverteu. Os cientistas sociais não entendiam a velocidade da transformação. Afinal, concepções dessa natureza não mudam tão rapidamente. A justificativa encontrada pelos sociólogos foi a proliferação de programas, de sereis de TV e novelas sobre o universo gay, com personagens homossexuais afáveis, como Will e Grace e Modens Family. O fato é que sempre pensamos na ficção como forma de escapismo. Mas uma história não produz entretenimento, ela também nos molda e é capaz, inclusive, de interferir nos acontecimentos históricos.
Jonathan Gottschall é defensor de uma tese original sobre o papel das obras de ficção. |
"Talvez os seres humanos não sejam tão bons quanto se pretendem. "
Veja:Não é um exagero dizer que a ficção é capaz de mudar o mundo?
Jonathan: Uma das principais evidências históricas de que a ficção tem esse poder foi a publicação, em 1852, de A Cabana do Pai Tomás, livro abolicionista escrito pela americana Hariet Beecher Stowe. A exceção da Bíblia, foi o livro mais vendido em todo o século XIX e teve um impacto enorme nos Estados Unidos. É reconhecido por todos dos historiadores como a força propulsora da guerra civil americana. O livro mostrou aos nortistas o lado cruel da escravidão. No sul, o efeito foi contrário. Os sulistas sentiram-se insultados pela obra. Há diversos outros exemplos de como a ficção mudou o mundo, nem sempre para o bem. Os Sofrimentos do Jovem Werther, do poeta alemão Goethe, provocou um dilúvio de suicídios semelhantes ao do personagem principal no seculo XVIII. Décadas depois, em 1835, o inglês Edward BulwerLytton escreveu o livro Rienzi, o Último do Tribunos, que inspirou o compositor alemão Richard Wagner a produzir a ópera do mesmo nome. A peça de Wagner, por sua vez, contribuiu para o ditador Adolf Hitleer escrever Mein Kamfp (minha luta), que inebriava os nazistas.
Veja:Um número de intelectuais diz que é impossível explicar a literatura e outras formas de arte de maneira cientifica, como o senhor está tentando fazer?
Jonathan: Há uma série de acusações contra os especialistas em humanidades que tentam conduzir o seu trabalho de forma mais rigorosa. Uma delas diz que o darwinismo literário, assim como a psicologia evolutiva, reduz tudo aos genes, sugerindo que o aprendizado não é importante. Isso é uma idiotice. As novas teorias baseadas na sociobiologia, corrente que estuda o comportamento por meio da evolução, emergiram nos anos 90 como contraponto ao determinismo cultural. Outra crítica é que temos inveja dos cientistas, dos físicos, químicos e matemáticos. Eu e meus colegas estamos, sim, à procura de um modelo cientifico, algo até hoje falho nas ciências humanas, especialmente na literatura. Eu quero imitar os cientistas, não apenas em termos de teoria, mas também na atitude e na criação de métodos. A ideia é ser objetivo em relação às pesquisas e investigações a respeito da literatura, não deixar que posições politicas e pessoas interfiram na produção acadêmica, como acontece há décadas na minha área. É preciso integrar ciência e humanidades para produzir conhecimento consistente, não papo furado e análises descabidas.
Veja:Foi a Ilíade, de Homero, que despertou o seu interesse em estudar a violência do ponto de vista evolutivo?
Jonathan: A Ilíade é um livro extremamente violento. Nada supera a obra em termos de violência, nem mesmo os mais hediondos filmes modernos. Estava estudando a Ilíade e alguns textos de sociobiologia quando percebi a possibilidade de entender a obra a partir da teoria da evolução. comecei a me interessar por lutas - assisti a combates de vale-tudo na televisão por mais de quinze anos. Demorei a sair do armário. Fazia isso escondido da minha mulher e dos meus amigos. Há cerca de dois anos, descobri que uma escola de artes marciais mistas, o MMA, tinha sido aberta a duas quadras do meu escritório. Era possível assistir, da janela da minha sala, aos atletas treinando e se digladiando no ringue. Tomei coragem e me inscrevi na academia. Não fiz isso por razões pessoais, mas por motivos intelectuais, Queria entender por que os homens lutam em combates rituais e quais as razões que levam um cara gentil como eu a se deleitar com esses espetáculos de barbárie.
Veja:O senhor conseguiu por que, afinal, os homens brigam?
Veja:O senhor conseguiu por que, afinal, os homens brigam?
Jonathan: Tanto na literatura quanto as ciências sociais mostram que os combates os homens estão a procura de status. Pode parecer um motivo fútil, mas o status é determinante para posicionar um individuo nas hierarquias. Estar no fim da fila hierárquica, tanto para os homens quanto para os animais, é muito ruim - e, claro, um óbvio risco à sobrevivência.
Jonathan: É uma pergunta a que ainda não consegui responder. A violência é, com certeza, uma ferramenta evolucionária, concebida para ser usada nas circunstância necessárias, não para ser apreciada ou para servir de entretenimento. No entanto, em todas as sociedades, mesmo nas mais pacificas, as pessoas se divertem com espetáculos sanguinolentos. Talvez os seres humanos não sejam tão bons quanto se pretendem. Como argumentar o psicologo canadense Steven Pinker, foi uma sucessão de eventos históricos que acalmaram os demônios dentro de nós e fizeram o lado bondoso da nossa especie sobressair ao lado obscuro. Os humanos são violentos.
Veja: Por que o senhor escolheu o MMA e não outro tipo de arte marcial como objeto de estudo?
Jonathan: Quando comecei a assistir a luta livre, nos anos 90, fiquei impressionado com a violência do esporte. Não pude acreditar que essa era uma forma de luta legalizada. Honestamente, os combates me reviravam o estômago Ainda fico enojado em algumas situações. O MMA não impõe limites para a agressividade. Além de ser a expressão máxima da brutalidade humana, tem-se ali uma modalidade muito eclética, que aceita modificações e está em constante evolução. Outras categorias, como o caratê e o judô, possuem regras fixas, não incorporam novos golpes. Arrisco-me a dizer que o MMA é a mais evolutiva forma de arte marcial.
Veja: Que lições pessoais o senhor aprendeu em um anos e meio de luta?
Jonathan:Acima de tudo, que sou um homem contraditório, parafraseando o poeta Walt Whitman. em alguns momentos me senti Dr. Jekyll e, em outros, Mr Hyde, as duas facetas de personagem de O Médico e o Monstro. No começo, não queria que meus colegas soubessem do meu projeto. Tinha medo de que eles me considerassem um ser selvagem. Alguns pensaram isso mesmo ao ver meu corpo transformado e minhas orelhas deformadas. Um intelectual que gosta de MMA não pode ser visto com bons olhos nas universidades.
Jonathan e família - foto de julho de 2010 - acervo pessoal. |
"Assisti a lutas escondido de minha mulher e de meus colegas por anos a fio. Tinha medo de que eles me considerassem um animal selvagem"
Veja: O senhor fez seu primeiro combate oficial há poucas semanas. Como foi a experiência?
Jonathan: A primeira e última. Não quero fazer isso de novo. Fui derrotado por uma chave de braço, mas não foi esse o problema. O pior foi o anticlímax do final. Não estava suado nem cansado. Depois de um ano e meio de treinos, dietas e um mês de ansiedade para entrar no octógono fiquei decepcionado. Foi tudo rápido. Esperava algo mais épico, prolongado e brutal. Como na Odisseia, ou na Ilíade.
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